Afirmamos e declaramos que mesmo a mais ignóbil tradução da Bíblia para o inglês, expressa ou esboçada por homens de nosso credo, ... contém a Palavra de Deus, não somente isto, é a Palavra de Deus. Como o pronunciamento do Rei, proferido no Parlamento, que, ao ser traduzido para o francês, para o holandês, para o italiano e para o latim continua sendo o pronunciamento do Rei, embora não seja interpretado por todos os tradutores com o mesmo decoro, nem, possivelmente, tão acuradamente em cada frase, nem tão expressivamente significativo em todos os lugares... Não há razão por que negar que a Palavra traduzida seja a Palavra.1
Aquilo que os tradutores da Versão Autorizada afirmaram em resposta àqueles que se opuseram a seu trabalho de tradução da Bíblia para o inglês, eles, e muitos outros através dos séculos, também reconheceram com relação às traduções para outros idiomas: que a Palavra de Deus, traduzida, continua sendo a Palavra de Deus. Isso era verdadeiro tanto para a Versão Autorizada como para uma das primeiras traduções do Antigo Testamento já feitas, a Septuaginta grega.
O Antigo Testamento
O povo de Deus sob a Antiga Aliança falava hebraico, e Deus moveu homens de Sua escolha para escrever Sua Palavra no Antigo Testamento em hebraico (e, em muito poucos versículos, em aramaico). Por muitos séculos isso foi suficiente para Seu povo: eles podiam ler a Lei e ensiná-la a seus filhos, como o Senhor havia ordenado (Deuteronômio 6). O antigo idioma dos Patriarcas servia muito bem ao povo, e eles continuaram a usá-lo em seu benefício por muitos séculos.
Porém, o pecado deles alterou essa situação. O povo abandonou o Deus de suas Escrituras e serviu a ídolos; eles falharam em guardar os sábados, como ordenado na Lei. A fim de punir o povo, trazê-lo de volta ao Senhor e dar à terra seu descanso sabatino (2 Crônicas 36.21), Deus enviou Seu povo para o exílio, para as terras dos pagãos assírios e babilônios. As tribos de Israel, do norte, jamais retornaram; e somente um remanescente das tribos de Judá, do sul, foi restaurado à sua terra.
Os setenta anos de exílio de Judá causaram numerosas mudanças no meio do povo. Nunca antes eles haviam abandonado o verdadeiro Deus e desobedecido Suas leis tão abertamente. Ao mesmo tempo, não eram mais o povo hebreu separado que haviam sido um dia. Muitos tomaram mulheres estrangeiras e tiveram filhos que não aprenderam a língua de seus pais (Neemias 13.23, 24). Vários escolheram ficar nos países de exílio, onde perderam a habilidade de ler hebraico.
Entre 336 e 324 a.C., Alexandre, o Grande, rei da Macedônia, conquistou uma grande parte do mundo então conhecido. Além de ser um grande conquistador militar, ele era, também, um conquistador cultural, levando consigo a cultura e a língua grega para os novos territórios. Alexandria, no Egito, tornou-se a sede de sua cultura helenística. Um considerável número de judeus, particularmente aqueles de Alexandria, aceitaram o grego como sua língua, com o que muitos nunca aprenderam a língua de seus pais. Tanto para os judeus fora como para os que estavam dentro de Israel as Escrituras hebraicas tornaram-se um livro fechado. Até mesmo a tradição da passagem oral das Escrituras de pais para filhos corria o risco de ser perdida. O povo precisava das Escrituras em sua própria língua para continuar na fé.
Mais judeus viviam fora da Palestina do que dentro dela. Comunidades judaicas podiam ser encontradas em Alexandria (Egito), em Antioquia (Síria), na Ásia Menor, na Grécia e na Itália. Muito poucos deles falavam hebraico ou mesmo lê-lo. Sua língua era o grego, a língua franca do mundo mediterrâneo.2
Além disso, o Antigo Testamento era um livro fechado para aqueles fora da nação judaica. Deus queria que Seu povo fosse “um reino sacerdotal e o povo santo” (Êxodo 19.6), para quem os povos das nações poderiam correr para a salvação. As Escrituras em hebraico somente tornavam esse objetivo mais difícil, particularmente com a vinda daquEle que seria a Luz para os gentios cada vez mais perto.
A Seputaginta
O problema da falta de Escrituras foi resolvido cerca de 250 a.C., com o aparecimento da tradução grega das Escrituras hebraicas, uma tradução conhecida por milênios como a Septuaginta.
Esta é a tradução dos Setenta intérpretes, assim chamada comumente, que preparou o caminho para nosso Salvador entre os gentios através da pregação escrita, da mesma forma que São João Batista fez entre os judeus, de forma oral... a língua grega era bem conhecida e familiar para a maioria dos habitantes da Ásia, por causa da conquista feita pelos gregos e, também, pelas colônias, que para lá enviaram. Pelas mesmas razões, era também bem entendida em muitos lugares da Europa, e mesmo na África. Por conseguinte, a palavra de Deus escrita em grego tornou-se, assim, uma vela colocada num candelabro, dando luz para todo aquele que estivesse na casa, ou como uma proclamação feita em alta voz no mercado, de forma que a maioria dos presentes seria informada. Assim, aquele idioma foi apropriado para conter as Escrituras, tanto para os primeiros pregadores do Evangelho que apelavam por testemunho, como para os discípulos daquela época investigarem e julgarem.3
A história da tradução da Septuaginta é envolta em mito e lenda. De acordo com Aristéias, um judeu helenista do segundo século a.C., Ptolomeu Filadelfo estabeleceu sua corte em Alexandria e começou a expandir a biblioteca, a fim de incluir tantos trabalhos quantos possíveis. O presidente da biblioteca, Demétrio, contou ao rei sobre os livros da Lei dos judeus e instou que o rei tivesse esses livros traduzidos para o grego e acrescentados à biblioteca. De acordo com este relato, Filadelfo designou setenta e dois eruditos hebreus, seis de cada tribo de Israel, para realizarem essa obra. Ele isolou esses homens na Ilha de Faros, onde cada um trabalhou separadamente em sua própria tradução, sem se consultarem entre si. Segundo a lenda, quando foram comparar seu trabalho, as setenta e duas cópias mostraram-se idênticas.
Esta história, talvez improvável, convenceu a muitos que a Septuaginta tinha uma qualidade sobrenatural que a ajudou a ganhar aceitação por setecentos anos. Até a época de Jerônimo, uns quatrocentos anos depois de Cristo. Alguns dos talmudistas judeus defenderam a inspiração da Septuaginta, dizendo que Deus havia inspirado o coração de cada tradutor.4
Em algum período durante os segundos e terceiros séculos a.C., a Bíblia hebraica (ou seja, o Antigo Testamento) foi traduzido para o grego. Ninguém tem absoluta certeza da história da Septuaginta, mas, nas sinagogas de judeus que falavam grego, ela alcançou uma larga aceitação bem antes do nascimento de Cristo. Era de se supor que os judeus resistissem a uma tradução do hebraico para o grego, tanto por rejeitá-la como desrespeitosa, como por considerá-la uma imitação inferior da Bíblia hebraica real. Porém, surpreendentemente, a nova tradução foi tão reverenciada como a versão hebraica. A Septuaginta foi considerada como a própria Bíblia.5
Jesus6, os apóstolos e os escritores do Novo Testamento também aceitaram a Septuaginta, usando com combinação com a Bíblia hebraica.
A versão da Septuaginta foi corrente por cerca de três séculos antes da época em que os livros do Novo Testamento foram escritos. Não é, portanto, surpreendente que os apóstolos tenham-na usado na maior parte das citações do Antigo Testamento. Eles a usaram como uma versão feita honestamente, em pleno uso na época em que escreveram. Em nenhuma ocasião deram uma tradução oficial de qualquer passagem de novo, mas usaram o que já era familiar aos ouvidos dos helenistas convertidos, quando era suficientemente correto adaptar o tema.7
Os tradutores da Versão Autorizada concordam com isso.
A tradução dos Setenta divergiu do original em muitos lugares, e nem foi literal na clareza, na gravidade, na majestade; contudo, qual dos apóstolos a condenou? Condenaram-na? Não. Eles a usaram... o que não teriam feito, quer pelo próprio uso, quer por sua recomendação elogiosa à Igreja, caso essa versão fosse indigna da designação e de ser chamada de Palavra de Deus.8
Talvez um dos mais importantes exemplos do uso da Septuaginta pelos escritores do Novo Testamento seja Mateus 1.23, onde o escritor do Evangelho cita Isaías 7.14. A palavra hebraica almah (cujo significado é defendido por muitos, hoje em dia, como jovem mulher, em idade de casar-se, mas não, necessariamente, virgem), é traduzida na Septuaginta como parthenos. Esta palavra grega significa virgem, indicando que os tradutores judeus dos tempos anteriores a Cristo haviam entendido a profecia de maneira correta. Outros judeus, depois do advento da Era Cristã, traduziram a palavra para o grego como neanis, “mulher jovem”, a fim de distanciar a profecia de seu total cumprimento em Jesus. Mateus cita a Septuaginta, aplicando-a a Jesus.
Outros escritores do Novo Testamento também usaram a tradução clara da Septuaginta em seus escritos. Em Hebreus 1.6 há uma citação do Salmo 97.7. A passagem do Velho Testamento fala de “imagens de escultura”, de “ídolos” e de “deuses”. A última palavra, em hebraico, é elohim (deuses). A Septuaginta traduz esta palavra como aggeloi (anjos). O livro de Hebreus toma a versão da Septuaginta, incorporando-a, no que se lê que “E todos os anjos de Deus” adorem a Jesus.
Para os Pais da Igreja, a Septuaginta não foi somente o Antigo Testamento que usavam em seus estudos, escritos e pregações. Foi a versão que traduziram para o latim. Com o tempo, ela passou a ser considerada o Antigo Testamento inspirado, mais ainda que a versão em hebraico. Justino Mártir cria que nos trechos onde hebraico e grego divergiam, a Septuaginta continha o texto correto e que os judeus haviam “eliminado totalmente algumas escrituras das traduções efetuadas por aqueles setenta anciãos”.9 A maioria dos Pais da Igreja fez mais citações baseadas na Septuaginta que na Bíblia em hebraico, quando as duas diferiam entre si. Irineu relata a história de Aristeu e afirma que “As Escrituras foram reconhecidas como verdadeiramente divinas... interpretadas [traduzidas] pela inspiração de Deus”.11 Clemente de Alexandria disse que “não era contrário à inspiração de Deus, que deu a profecia, também produzir a tradução, e fazê-lo como se fosse a profecia em grego”11, estabelecendo base para sua alegação de que Amós, o profeta, era o pai de Isaías, partindo da idêntica soletração de Amós e de Amoz, em grego.12
Não foi antes do final do século IV d.C. que a Igreja Primitiva, finalmente começou a abandonar sua ligação com a Septuaginta. Outras traduções do Antigo Testamento foram feitas para o grego, principalmente aquela de Áquila, Símaco e Teodócio. Esses três homens, conhecidos como judaizantes, produziram edições que expunham suas tendências heréticas. O número crescente de traduções motivou Orígenes a compará-las, produzindo a Bíblia poliglota, a Hexapla, que consistia de edições de várias traduções (hebraicas, da Septuaginta e muitas versões gregas), exibindo as diferenças entre elas.
Jerônimo, por muitos anos, traduziu o Antigo Testamento da Septuaginta para o latim. Na última parte do século, entretanto, ele reconheceu as diferenças entre a Septuaginta grega e o hebraico, e começou a fazer traduções dos livros hebreus, principalmente para o uso e benefício de seus amigos. “Jerônimo foi frequentemente criticado por usar o texto hebraico, em lugar da Septuaginta, como base para sua tradução, mas ele argumenta, com propriedade, que a Septuaginta não era inspirada e que a melhor tradução deveria ser feita a partir do hebraico, a língua original do Antigo Testamento”.13 Com o tempo, sua tradução, a Vulgata, cresceu em importância e tornou-se a versão latina aceita.
Por milhares de anos, a Vulgata foi a versão proeminente usada pela Igreja Ocidental. Porém, Deus moveu a atenção dos Reformadores de volta para a Bíblia nas línguas originais. Mesmo então, os Reformadores – como os judeus haviam feito no exílio – reconheceram a necessidade do povo de ter as Escrituras numa língua que pudesse entender. Assim, homens como Lutero e Tyndale, usaram os textos nas línguas originais como base de seu trabalho. Os tradutores da Versão Autorizada escreveram: “Como poderão os homens meditar sobre o que não entendem? Como poderão entender aquilo que está encerrado numa língua desconhecida? como está escrito: Mas, se eu ignorar o sentido da voz, serei bárbaro para aquele a quem falo, e o que fala será bárbaro para mim. O apóstolo não eximiu nenhuma língua; nem o hebraico, o mais antigo; nem o grego, o mais abundante; nem o latim, o mais elegante... Traduzi-la é o que abrirá a janela, deixando a luz entrar; a quebra da casca, para que comamos a noz; que afasta a cortina, de maneira que possamos olhar para o lugar sagrado...”14
Assim, as Escrituras traduzidas a partir das línguas originais, foram colocadas à disposição do povo através da Europa.
A Seputaginta hoje
Hoje em dia o texto hebraico do Antigo Testamento está à disposição das pessoas em todo o mundo. O hebraico, traduzido para uma multidão de línguas tornou o Antigo Testamento acessível a milhões de pessoas. Os leitores gregos têm o Antigo Testamento em seu próprio idioma, que é prontamente entendido que no grego arcaico encontrado na Septuaginta. Assim, questiona-se muito a necessidade da Septuaginta nos dias de hoje.
Entretanto, a Septuaginta continua a preencher um espaço, particularmente na tradução da Bíblia. O hebraico do Antigo Testamento, ainda que bonito em seu fraseado e em sua forma, nem sempre é claro. A Septuaginta, tendo sido traduzida sem a tendência de anticristãos e sem a deturpação da teologia liberal moderna ou da teologia neo-ortodoxa, proporciona uma edição do Antigo Testamento que é anterior ao manuscrito hebraico considerado mais antigo. Assim, embora inferior ao texto hebraico, oportunamente a Septuaginta é um auxílio útil no estudo da tradução do Antigo Testamento.
Mais proveitoso para o cristão médio é o fato de sabermos de que nosso Salvador e Seus discípulos mais próximos usaram uma tradução das Escrituras. Podemos descansar no reconhecimento de que não é necessário ler em grego ou em hebraico a fim de ter acesso à Palavra de Deus.
Agradou a Deus abençoar a Septuaginta e, através dela, Seu povo. Ainda assim, agradou-O, também, através dos séculos e por todo o mundo, providenciar para Seus filhos Sua Palavra numa variedade de outras traduções e outros idiomas. Que Ele continue a fazê-lo, até o dia em que Sua Palavra atinja seu cumprimento final!
Notas de fim
1 The Translators to the Reader: Being a Reprint of the Original Preface to the Authorized Version of 1611 (Londres, Inglaterra: Trinitarian Bible Society, 1911, 1998), p. 20. Seria um debate mais interessante, mas remete a um problema de conjectura, se os tradutores da Versão Autorizada teriam aceitado o mesmo ponto de vista do grande número de traduções e edições das Escrituras que abundam hoje em dia. Muitas de tais traduções baseiam-se, de modo geral, menos nos princípios transacionais e textuais do que naqueles aos quais aqueles homens aderiram e são, portanto, sob o ponto de vista desta Sociedade, indignas da designação de Palavra de Deus.
2 Jakob van Bruggen, The Future of the Bible (Nashville, TN, USA: Thomas Nelson Inc., Publishers, 1978), p. 37.
3 Translators to the Reader, p. 13.
4 BT Megilla 9a, Sof 35.
5 van Bruggen, pp. 37-8.
6 Um exemplo do uso que Jesus faz da Septuaginta é encontrado em sua refutação ao diabo, em Mateus 4.4. O hebraico, em Deuteronômio 8.3, apresenta “boca do SENHOR”; a Septuaginta tem “boca de Deus”. É esta última que Jesus cita.
7 BRENTON, Lancelot C. L. – Introduction to The Septuagint with Apocrypha: Greek and English (Peabody, MA, USA: Hendrickson Publishers, 1986, 1992), p. iv.
8 Translators to the Reader, p. 21.
9 Justino – Diálogo com Trifo – capítulo 71.
10 Irineu, Contra as heresias, 3.21.2.
11 Clemente, Miscelânias, 2.22.
12 Ibid., 1.21.
13 SEVERANCE, Diana – The Feisty Jerome: His Bible Legacy Lasted Over 1,000 Years – Glimpses Issue #57 [http://www.gospelcom.net/chi/glimpses/fiftyseven.html], 1994.
14 Translators to the Reader, p. 12.
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